quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

nada é fácil...

No dia de natal, no silêncio adormecido dos cantos mais improváveis de um estabelecimento de saúde, eis que um estranho ser labuta intermitentemente. Em cima de um armário um pacote de Mon Cherries, contendo cinco unidades. «De quem será?», pensou. Olhando para a folha da limpeza, apenas Deolinda assinalara a sua presença nestes dias. O seu nome gravado na parede, ora com um 'e' ora com um 'i', constituia um facto que sempre o intrigara. Surgiu nele uma vontade de sentir o licor a arder pela garganta. Não pelo chocolate, figura omnipresente por esta altura, mas pelo licor, oculto sob a forma de um doce numa prata brilhante e infantil. «Alguém aqui o deixou», deteve-se, «e decerto não para mim a menos que por intermédio uma improvável conspiração cósmica». O ser labutante gostava da ideia de conspirações cósmicas, sobretudo gostava de Mon Cherries, mas com Deolinda no pensamento deixou o pacote intacto, reproduzindo na sua imaginação a satisfação que é encontrar por fim algo que há muito se julgara perdido.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Ondas celestes
que aspiram à existência
num mundo pejado
de incerteza
Não consigo criar
quando tento
Por causa das brechas
de matéria escura
Que compõem
a natureza humana
Sinto por ti uma calma transbordante.
Uma intensidade pacificadora.
É como se todo o mundo coubesse no meu peito
sem oprimir as minhas vísceras.

que ampare o eminente embate do meu corpo nos desfiladeiros

O João entrou no quarto e perguntou à Maria se ela tinha visto o ratinho que passara. Ela respondeu-lhe que o seu coração era de tal forma volumoso e denso que decerto o ratinho teria dado a volta por fora do mediastino. Este peito, pensou ela, é a única forma de antes de mim não haver ninguém (que ampare o eminente embate do meu corpo nos desfiladeiros).

terça-feira, 4 de novembro de 2008

O tecido do silêncio humano

Acho o silêncio hediondo. A ansiedade basal por detrás da emergência. Na verdade não é o silêncio que é hediondo mas as recordações, ou nem sequer as recordações mas a sua ausência.

Demoro trinta minutos a escolher a caneta com que iniciarei a descrição do meu silêncio. Mas passados os trinta minutos não é sobre o silêncio que falo nem sobre o que ele esconde. São apenas os trinta minutos (tic tac) que falhei no objectivo de alcançar a esperança de um tecto.

De que falamos? Ah sim, desse fardo hediondo, sempre presente por debaixo de tudo o que se apaga. Acho que finalmente percebo, recuso-me a ter duas vidas, recuso o código que me incita à vida eterna e no entanto por ele recuso... (por debaixo de tudo que se apaga).

São três as camadas de ocultação que se desenrolam ao longo dos trinta minutos em que escolho a caneta. Sou eu que diligente no trabalho estou só, mas apenas à escala de todas as vidas que me possuem, uma após outra ou em simultâneo, ocultas no tecido do silêncio humano. Tudo se deslumbra na consciência que não conhece o passado ou o futuro: Apenas a narrativa tardia de todo o tempo em simultâneo.

Não faço sentido, eu explico: Persigo os segredos do mundo para fugir à evidência de que preciso de iludir os meus sentidos. Acabo no entanto por iludi-los de outra forma. E o silêncio retorna, impiedoso, para me lembrar que existe e que existo, por debaixo de todas as formas.

Um dia vou-me apagar, e comigo o desejo de acender para sempre, aquilo que um dia se acendeu em mim.

Entrei no quarto e puxei a cortina. Estava uma pessoa deitada. Era um adolescente.

A minha sanidade mental não está em jogo. Era mais fácil, rápido e eficaz perder a vida às mãos do destino, do que perder a sanidade mental.
A minha vontade tem a força que a minha psique não tem. O meu corpo desmorona-se, acelera, estilhaça-se, cede, as náuseas, as tonturas, o nojo, o nojo, o nojo. O nojo de ser afastado do que amo. O nojo de ser sem um singificado para todos os momentos. Mas vou na mesma, entre avanços e recuos, fugas para a toca sombria, recolhimentos para a humidade primordial, volto, volto sempre, volto enquanto tiver que voltar, apesar da náusea e do nojo, apesar da transitória morte metafísica que cada dia mais sinto como corpórea. Estilhaços de mim. Hei-de ter tempo de os recuperar. Por agora avanços e recuos, conto a mim mesmo a história de que a vida não termina aqui.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

O que nós somos é a soma de todas as ideias que nos possuem

Quando da mente de um individuo nasce uma ideia, ela cedo foge à tirania dos seus criadores. Frequentemente manifesta-se, espalha-se e transforma-se sem pedir licença. As ideias infectam-nos e mudam-nos, muitas vezes sem o pedirmos ou esperarmos. Possuem-nos com o seu desejo de expansão e replicação incontroláveis. O que nós somos é a soma de todas as ideias que nos detêm. Umas geradas por nós, outras apenas re-criadas a partir da arte de outras pessoas. Todas nos transformam, todas nos fazem crescer. Mas apenas se expusermos e nos exposermos, poderemos progressivamente abandonar aquelas que nos destroem.